top of page

Conto escrito por Chiara Lazzaratto

            Nasci pedra, sou pedra e continuo pedra. Acordei com as lágrimas de um céu tropical, rente a um morro altíssimo, de altura que não sou capaz de calcular. Trago em palavras aquilo que carrego e suporto desde o primeiro dia de minha existência. Aquilo que os homens e mulheres historiadores não conseguiram decifrar, mas que o peso das carroças abastadas do minério cor dourada gritou incessantemente aos meus ouvidos durante anos e de forma ininterrupta. Revelo a história de meu povoado, de minha vila-mãe, de minha cidade. Apresento-lhes as pegadas e resquícios de índios, colonos, escravos, visitantes. Faço com que as cores pigmentadas dos grandes quadros históricos invejem minha precisão ao descrever as idas e vindas daqueles que aqui nasceram e sobreviveram.

            Eu sou pedra. Sou pedra desde que me lembro por pedra. Pedra nascida pedra, nada mais que pedra. Mas já me chamaram de rocha. Já me chamaram de granito. Pé-de-moleque. Mas pedra. Sempre pedra. Vindoura das mãos de um negro qualquer a comando de um colono qualquer. Sou pedra e sou velha, dos antigos calçamentos provenientes de um primeiro cunhadismo. Exclusiva e única desta minha terra de nome tupi, "Rio das tainhas".

Pedra conhece. E pedra, quando quer, transmite o que conhece.

Bem-vindos à Paratii. Olhe por onde anda.

Gênese

17 de dezembro*, 1640 

          Eu descobri o Brasil no dia em que eu nasci: antes de ontem. Me sobressaltei com o falatório de minhas irmãs, era uma gritaria só. Gritos intensos e constantes, provenientes de zumbidos e conversas com irmãs mais distantes.

          Nós descemos. Contaram-me elas que houve mudança, grande mudança. Algumas centenas de homens brancos, outros tantos homens indígenas, desceram o altíssimo morro em que se instalaram, de forma provisória, alguns anos atrás. Mudança esta, fruto de uma negociação com Maria Jácome de Mello. Mulher branca, mulher casadoura. Nós descemos e eu fui concebida nessas terras de menor altitude. Os motivos são concretos, negociações são concretas. Em uma substituição a São Roque, devemos iniciar, imediatamente, sob o comando da proprietária, a construção da capela em devoção a Nossa Senhora dos Remédios. A segunda condição assegura o trato dos homens Guaianases que aqui vivem. Moldaram-me e estabeleceram-me neste local, rente a minhas irmãs, com um provável intuito facilitador dessa primeira construção. Carroças pesam. Dizem as bocas confiáveis que mais algumas centenas de homens estão por vir.

          Estamos a uma légua e meia de terra entre os rios Paratiguaçu e Patitiba. Paratii respira os ares litorâneos e eu escuto.

*Morte de Nossa Senhora dos Remédios

Puberdade

1 de março*, 1667

          Iniciaram-se transformações, irmãs! Eu comemorava. Está feito! Carta Régia declarada, povo sobe ao pódio! Nosso povoado elevou-se à condição de Vila, 7 anos de luta! Emociono-me. Após nos desvincularmos de Angra dos Reis, a desejada autonomia política vem caminhando junto da festa!

          Ouço esperança. Minhas costas amaciam a rigidez destes últimos anos. Agora o destino é próspero. As falas do Governador Geral do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá, já chegaram às nossas terras e os homens negros começaram a marcar e abrir o antigo caminho dos Guaianás para os domínios mais interioranos. Da-lhe fartura e fortuna! Viva o povo! Viva o povo paratiense! Viva a Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii!

*Um dia após a promulgação da Carta Régia de 1667

Prosperidade

9 de maio*, 1703

          Uma euforia, diferente das anteriores, preenche os poros de minha superfície. Mas não só os meus, os poros de qualquer outro cidadão da região. Não faz muitos anos que os homens brancos, da língua que engole vogais, descobriram e anunciaram ao mundo as minas do minério amarelado lá do interior. Desde então, nossas terras renderam falatório. As autoridades maiores, que vivem nas terras vizinhas à essa, determinaram Paratii como obrigatória passagem de todo minério brilhante que do interior sai, com a também brilhante justificativa de que “quanto mais forem os caminhos, mais descaminhos haverá”.

          Desprezível é a gritaria das carroças puxadas pelas gentis mulas, comparado ao peso da carga que estas levam. Meus ossos contam cada grama da riqueza que elas transportam. Contudo, todo desconforto é recompensado quando a noite cai e novas e diferentes vozes surgem para que eu possa escutá-las!

          Hoje, o trânsito aqui se fez maior. Dia de novidade! Nova Carta Régia tornou oficial a construção da Casa do Registro do Ouro para controlar todo esse fluxo de mulas e de novas línguas falantes! Paratii sempre orgulha os daqui nativos, com suas terras primorosas e prontas estrategicamente para que tudo isso ocorresse. Nossa baía é Olimpo. Prosperidade é quase como um lema, eu diria.

*Dia da promulgação da Carta Régia de 1703

Imprevisto

Inverno

15 de julho, 1767

          Houve uma substituição. Inicio fria, pois já é de conhecimento de todos que pedras são gélidas nesses tempos de seca. Consequências. Somos seres que vivem sob o comando das circunstâncias. Seres circunstanciais.

          A obra foi terminada hoje. Meus cálculos dissolveram-se na preocupação, mas acredito que passaram-se, aproximadamente, 60 anos desde seu início… Eu já estava feliz e desacreditada, felicíssima e desacreditada desta mudança! Mas houve insistência. Ela é mais rápida. Ela é mais curta. Uma nova estrada. Nova. Sair diretamente dos grandes terrenos do Rio de Janeiro, seguir pela Serra dos Órgãos e findar já em Minas Gerais.

          O povo pediu, o povo gritou! O novo caminho coloca o nosso futuro em uma incerteza desagradável. Qual seria o nosso propósito sem o fluxo das carroças no Caminho do Ouro? Não teve homem branco disposto a dialogar. Pelo contrário: nossa Trilha Guaianá, nosso Caminho do Ouro da Piedade ganhou pedágio. E com ele vieram multas. Governador Luiz Vahia Monteiro, excelentíssimo, determinou o regimento no qual cobra seiscentos e quarenta reis de pedágio por tropa.

          Eu poderia lhe dizer, Excelentíssimo, quantos são aqueles providos de tal riqueza e que se adequam ao seu decreto, mas retomando o meu eterno estado de inércia, me agrada mais poupar palavras, já que estas não mudariam em nada a sua concepção sobre a economia de nossa terra.

É mais conveniente permanecer na escuta, afinal.

Ressurgimento 1

Fênix

13 de setembro*, 1799

          Não existe contradição maior ao nascer pedra. Estagnadas e imóveis, mas com pensamento visando sempre o progresso! Sustentamos um povo que tropeça. E agora, a recompensa! Ela se chama aguardente. Nosso aguardente! Produzido aqui desde a primeira gota. Originário dos nutrientes do solo paratiense, onde é plantado a cana de açúcar, pingou e desceu doce pela garganta de nosso povo no momento certeiro! A riqueza ressurgiu com sua venda e troca por mais homens negros, que agora, sobem nossa Serra para trabalharem nas terras de Minas Gerais. Vão com Deus, mas passem por nossa estrada primeiro! Sim! Ela ressurgiu! Nós ressurgimos! Prosperidade que sobe a Serra do Mar!

          A ilegalidade do ato proíbe festa. Nós não deveríamos permitir que os homens negros fossem transportados pelo nosso "Velho Caminho", devido ao "Novo Caminho"... Mas são as circunstâncias.

          A festa virá mais tarde. Sim! Ela virá!

*Dia nacional da cachaça

Ressurgimento 2

Marear

14 de maio, 1888

          É necessário fornecer esclarecimento àquele que lê. Em 1840, nosso país foi palco de uma troca de governo não tão comum e, hoje, aquele que o povo deve aclamar chama-se Dom Pedro II. Sujeito curioso, conclusão esta que cheguei após bons anos de ouvidos abertos a esse nome.

          Junto a Dom Pedro II veio o café. Transformou cada aspecto do que achávamos que era a economia nacional e hoje reina ao lado do homem o qual eu citei. Nosso aguardente ainda batalhava em nossas terras, mas os cafezeiros não trouxeram o mal. O Velho Caminho, como ficou conhecido nossa belíssima estrada, era via de passagem de muita coisa boa e útil, inclusive o café. Origina-se no famoso Vale do Paraíba, decorre por nosso Caminho e  emana-se oceano adentro através de nosso porto. E junto dele desceram escravos, objetos de luxo para os proprietários de todo cafezal, azeite, povo, muito povo!

Mas aconteceram imprevistos. O grande Dom Pedro II investiu na direção a qual seguíamos paralelamente, mas de forma contrária. A partir de 1850, os homens negros pararam de descer pela Serra. Lei Eusébio de Queiroz. Em 1860, aproximadamente, ele inicia obra nova, as confiáveis vozes referem-se a ela como modernização. Uma estrada como a nossa, mas feita de ferro. Estrada de ferro. Precisaria observá-la para entendê-la plenamente, os paratienses engolem palavras importantes. Já em 1877, dez anos atrás, a estrada do minério marrom chegou em Guaratinguetá. Vale do Paraíba e seus reis não precisavam mais de nossas passagens para chegar com seus produtos ao litoral. Crise.

E ela é crescente.

          Sinto falta do tilintar do ouro. Sinto falta do peso insuportável e aconchegante das carroças e mulas abastecidas por ele. Paraty é uma região de idas e vindas e esse movimento de vai e vem é o que nos trouxe para onde estamos agora. Deve-se ser paciente e observar as circunstâncias como algo cíclico.

          Ontem a filha do grande Imperador, aprovou a abolição da escravatura no Brasil. Sem homens negros, diminui a produção canavieira. Sem homens negros, diminui a manutenção de nosso Caminho do Ouro. O movimento por nossa trilha que já estava escasso, tende a ter um fim doloroso. Mas não é preciso índio, não é preciso escravo. Suas costas e seus ossos, de pedra não tem nada.

           O fluxo deve existir do mesmo modo que os grandes peixes brancos nadavam até as mãos fortes dos antigos guaianases. Esperemos, portanto, que a correnteza esteja favorável.

Ressurgimento 3

Réveillon

31 de dezembro, 1989

          Ainda bem que eu e minhas irmãs sempre fomos educadas a lidar bem com transformações. Mudar de século não é algo fácil. Mas nós estamos aqui. E Paraty também.

Foram momentos de intensa meditação. Nossa terra, aos poucos, foi isolando-se e sendo isolada. Não havia mais voz, grito ou negociações. Fomos perdendo importância, e as coisas foram perdendo seu significado. Nossa Senhora dos Remédios manteve uma fé, mesmo ela escassa, dentro dos restantes cidadãos de cá. Dizem por aí, que foi essa estagnação que preservou o que hoje é chamado de Centro Histórico. Não sei ao certo. Mas resistimos. E resistimos bem!

Vai e vem.

Vai e vem.

          Como a maré que trouxe os primeiros homens brancos.

          Em 1950, nós despertamos: O barulho de motor nos assustou. Um carro chega a Paraty! Houve festa, esta nós nunca esquecemos como faz. Voltar para o lugar de onde veio, o carro não conseguiu, mas aquele acontecimento nos deixou mais leves: o automóvel havia trazido algo a mais, algo que não sei descrever ao certo. Uma pitada de esperança e barulho para aquela fé empoeirada e silenciosa. Vinha de uma estrada recente, Paraty-Cunha.

          A partir dele vieram outros. A estrada passou por ajustes e logo tornou-se mais acessível. Como um portal, um atrativo perfeito para as nossas terras! Surpreendi-me com os novos visitantes. Turistas, eles denominavam-se. Não engoliam vogal, não traziam artigos de luxo para seus superiores, não estavam ali por obrigação. Exploradores, eu avaliei, quase como os antigos homens brancos. Só que novos. E um pouco transformados.

          Ano passado, com a abertura da BR-101, esse fluxo de exploradores se intensificou. Vozes! Como eu amo ouvir vozes! Eram sedentas de informação e nós, ansiosas por disponibilizá-las. Os turistas foram afundo, permearam a mata e lá encontraram nosso antigo Caminho Guaianá. Exalou-se nostalgia. Fomos resgatados do abandono.

          Ah! Não posso me esquecer de registrar outros momentos importantíssimos: 1945, Paraty é declarada Monumento Histórico Estadual! Logo depois, em 1958 já somos considerados Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Por fim, em 1966, proclama-se Paraty como Monumento Histórico Nacional. Eu sabia! Reconhecimento caminha lento, mas sempre chega. Já era de se esperar que os novos acontecimentos gerassem um falatório intenso entre minhas irmãs. Eu só fui entender depois de alguns dias: nós estávamos livres. Livres de ameaças e de esquecimento. Nós estávamos registradas oficialmente, quase como uma permissão para a existência. Pulsando com força no centro de uma região pulsante. Explorador, mesmo que bonzinho, não é dono, é visita! 

Nós passamos a ser livres para ir adiante, sempre adiante e, por isso, nós continuamos exatamente onde nós estávamos: em Paraty. Terra de pedra. Feita de pedra.

Autor (a)

Chiara Lazzaratto

Graduada em História pela UNICAMP é, também, contadora de histórias, formada no Curso Técnico de Artes Dramáticas da USP (EAD). 

bottom of page